Eu leio de forma aleatória, seletiva e quase promíscua.
Se algo chama a minha atenção, eu leio devagar. E tendo a reler incansavelmente o conteúdo.
O foco não é memorizar a matéria. Eu quero compreender mesmo que seja difícil e denso o assunto. O indicador que considero ideal é o momento que explico com uma linguagem simples para um amigo e ele entende o tema sem dificuldades.
Isso demanda esforço eu sei (apenas uma vez).
Hoje eu me deparei com o Código de Hamurabi.
Ele foi escrito há 3800 anos e colocado em um local de destaque na Babilônia, onde todas as pessoas alfabetizadas pudessem acessar as leis nele escritas (282 leis ao todo). Esse código não vinha apenas da Lei de Talião que muitos conhecem como “olho por olho, dente por dente”.
Esse conjunto de leis informava que você não pode fugir dos riscos que promove aos outros. Você é totalmente responsável por seus atos. Existem contas a serem pagas e um balanceamento a ser feito.
Se você é um construtor e a casa que você construiu desaba causando a morte do proprietário, você deverá ser condenado a morte. Caso o filho do proprietário tenha falecido, o seu filho será morto e assim por diante. Para cada dano causado existe uma responsabilidade em jogo. Ela deve sempre ser equivalente e clara.
Claro que nos dias de hoje existem leis regulatórias que condenam e processam um médico que extrai a perna errada de alguém. Ele não terá a própria perna amputada como consequência, mas pagará pela iatrogenia de forma legal.
Porém, em muitas oportunidades existem desequilíbrios.
Quantas vezes o seu gerente de banco ou ”consultor financeiro” não te indicou um excelente portfólio de investimento (ações/ opções) ou um maravilhoso título de capitalização? Nesse momento eles nos olham como se aquela proposta fosse o manjar financeiro mais delicioso do século.
Você veste um casaco de pele de cordeiro e aceita a proposta (lobos te observam endossar a autorização do investimento). Dias depois, após um estudo raso e uma conversa “de churrasco” com seu vizinho, você conclui que o seu dinheiro não está rendendo e sendo lucrativo para você.
Se esse sistema utilizasse o Código de Hamurabi, o seu gerente e o dono do banco iriam sacar dos próprios honorários o dinheiro referente as suas perdas e devolve-lo com juros e correções em sua conta corrente. Sabemos que não é isso o que acontece, certo?
Risco, responsabilidade e sequelas para você. Emoji sorrindo para os outros.
E dentro da odontologia? O quanto nos colocamos como responsáveis por nossas escolhas e condutas de tratamento? Existe uma simetria pura e evidente? Existe equivalência? Reciprocidade? Veja, eu não estou te chamando de irresponsável mas apenas estimulando o seu julgamento.
Um artigo excelente escrito por Martin G. D. Kelleher com o título The ‘Daughter Test’ in Aesthetic or Cosmetic Dentistry (O Teste da Filha em Odontologia Estética) é uma crítica moderna sobre o assunto.
Após realizar um diagnóstico e plano de tratamento reabilitador para o seu paciente, o autor lhe questiona: “Você faria esses mesmos procedimentos na boca da sua filha?”.
Essa publicação é de 2010 mas soa assustadoramente atual.
Chama a atenção o sentimento de indignação do autor frente as reduções indiscriminadas do esmalte dentário para acomodar as restaurações cerâmicas (de acordo com as normas recomendadas pelo fabricante).
Ele abre o seu artigo insinuando que na cabeça de muitos dentistas parece existir uma doença denominada “HiperEsmaltose”. Nela o esmalte parece crescer indiscriminadamente e a nobre função do dentista é utilizar o “Exterminador de Esmalte” (Enamelator em inglês, vulgo micromotor) para curar o paciente desta terrível doença.
Kelleher também ressalta:
- Como as demandas estéticas, sociais e emocionais dos pacientes sobre os dentistas, estimulam essa odontologia restauradora iatrogênica.
- O papel deletério dos “Gurus” que propõem protocolos agressivos com estabilidade duvidosa a longo prazo.
- A linguagem inadequada e tendenciosa na orientação dos pacientes, utilizando denominações como restaurações “definitivas” (sabemos que nada é eterno o bastante dentro da cavidade bucal).
- Um contraponto sobre o ressarcimento e honorários, onde o dentista recebe maior aporte financeiro em procedimentos mais agressivos como restaurações cerâmicas e implantes quando comparados a restaurações em resina composta e clareamento dentário.
- Ele cita como absurdo se (hipoteticamente) na medicina, um cirurgião cardíaco recebesse honorários maiores para ser mais agressivo e mórbido com a estrutura hígida do coração do paciente. Como se na realidade médica, não fosse prioritária uma conduta o mais conservadora e menos invasiva possível para todos os pacientes.
Quanto maior o risco que assumimos, quanto maior a responsabilidade abraçada por estes riscos, mais sinalizamos as nossas virtudes.
PS. Se esse texto fez algum sentido, jogue ao vento.