Oxigênio.

No dia 13 de março eu fechei as portas do consultório.

Foi uma merda. Foi estranho. Foi asfixiante.

Eu aprecio o controle, o equilíbrio e a sensatez. Mas as minhas mãos estavam vazias.

A convicção de que o Covid-19 não ia me pegar era indiscutível. Acreditava que tudo se resolveria em questão de quatro semanas.

No entanto, receber todos os dias relatos de milhares de infectados e mortos pela mesma causa, mina a sua tenacidade e corrói o seu espírito.

“Já passei por muitas crises. Mas essa é a mais violenta de todas.” Abílio Diniz

Me lembro de fazer reuniões virtuais com a minha equipe e observar a aceleração dos óbitos.

Em uma segunda-feira morriam trezentas pessoas.

Na semana seguinte setecentas.

Oitocentas.

Mil – Pessoas – Morrendo – Em um único dia.

Aonde isso vai parar? Quando vai parar? Como vamos fazer parar?

Tudo parece um mar de águas calmas até você se conectar com histórias de quem se contaminou e sofreu nas entranhas o que essa doença é capaz de fazer.

Me lembro de ver um vídeo com o relato do Roger Gracie. Um grande ícone do Jiu Jitsu. Jovem. Saudável. Dieta Gracie.

Ele ainda estava um pouco ofegante ao falar.

Contava como foram as noites de febre alta. Oxigenação no limite. Duas idas ao pronto socorro em Londres. E o medo de ser internado em uma UTI.

Semana passada eu conversava com um casal de pacientes.

Eles se contaminaram no início da pandemia. O tom da conversa era agradável e descontraído e no meio dela o Sérgio me contou como foi lidar com tudo isso.

“Olha Dr. Fábio, eu cheguei no PS respirando normal mas sentindo uma fraqueza muscular. Eles mediram o meu nível de oxigênio e estava péssimo.

Me internaram rápido. Algumas horas depois me disseram que eu seria entubado.

Quando eu acordei novamente, me perguntaram se eu sabia quantos dias eu tinha ficado apagado. Eu disse: Dois? O médico me olhou firme e corrigiu: Vinte e dois dias, Sérgio.”

Foram duas transfusões de sangue, uma parada cardíaca, problemas renais sérios, entre outras mazelas desta história de terror.

Uma matéria publicada no The New York Times pelo colunista Nicholas Kristof também me deu um soco bem dado na boca do estômago.

Chama a atenção um vídeo que demonstra as condições dentro de dois hospitais no Bronx que superlotados, atendiam pacientes com Covid-19.

Quando você observa a expressão no rosto da equipe clínica era possível sentir o caos.

Não ter a cura em um horizonte próximo produz falta de perspectiva. Isso destrói (aos poucos) o otimismo de qualquer ser humano.

O cenário era esse ao meu redor. Essa era a energia.

Em fevereiro a vida era entre outras coisas:

  1. Atenção quanto à consultas complexas em dentes anteriores. Expectativa do paciente. Será que ele vai gostar do novo sorriso?
  2. Fechar novos tratamentos para conseguir manter a gestão da clínica em dia. Treinar e motivar o time da Hirata.
  3. Tomar um café descontraído com os meus pacientes. Encontrar amigos no Ciosp.

Ser aluno. Ser professor. Ser livre.

Em março a vida mudou.

O contrato de liberdade teve algumas cláusulas alteradas. O controle (que eu prezo como ouro) virou pó. A bússola do escoteiro japonês quebrou…

Sendo brutalmente honesto (como sempre) a Fé parecia ter fugido do meu peito.

Como orientar alguém quando ainda precisava descobrir o meu novo papel?

Em um novo mundo. Um novo normal.

Eu tinha certeza que havia me contaminado.

Foram algumas noites sentindo falta de ar ao dormir. Outras passando por uma dor aguda nas amígdalas. E até mesmo sentindo calafrios ao colocar o pijama.

Eu estava certo disso…

Ontem recebi o exame. Não reagente. Mas como assim?!

“Para um Homem com apenas um martelo. Tudo começa a parecer um prego.” Shane Parrish

Já são quase três meses de CAOS. Mãos vazias. Saudades da Odontologia.

Um forte abraço.

Fábio “Não Reagente” Hirata

–/–

PS. Eu sou um caçador de soluções por natureza. Preciso conhecer, compreender, saber o que se passa ao meu redor.

Descobrir o valor que me faz diferente de você ou de uma máquina direcionada por inteligência artificial.

Se quiser entender de forma mais profunda minhas preocupações com o presente e o futuro. Aconselho que leia alguma obra do historiador israelense Yuval Noah Harari.

Os seres humanos (inclusive nós dentistas) desconhecem como aprender algo que os tornem únicos, viáveis e diferenciados.

Acredita-se que se ensina algo.

Acredita-se que se aprende algo.

Acredita-se que isso gera valor por ser especial.

Isso é uma grande idiotice. Isso é um modelo falso como diria o filósofo Karl Popper. Logo, o sistema de ensino é ineficiente.

Ter um MBA não fará você conseguir uma vaga de emprego na Apple.

Pedaços de papel timbrado não te tornarão um dentista bem sucedido.

Utilizar um modo Online, Offline, presencial, espacial não é o cerne da questão.

Acredite não é nada disso!

Hoje você aprende por transmissão de dados e informação. Isso gera um punhado pequeno de conhecimento. Uma compreensão superficial. Sabedoria zero.

Quem você acha que realmente cresce e aprende, o professor que tem que pesquisar, ler e interpretar o tema de uma aula; ou você que recebe o conteúdo que o seu professor vomita em 50 minutos?

O máximo que você fará é reler suas anotações que são cópias literais do que está escrito.

Talvez ver fotos dos slides da aula em seu celular. Intercalando com rápidas visualizações de fotos dos seus amigos no Instagram.

Sejamos honestos. Eu e você não veremos essas fotos tão cedo.

Essa crise foi como um soco na ponta do meu queixo.

Ela me nocauteou por alguns segundos. O juiz chegou a nove na contagem. Mas eu consegui levantar aos trancos e barrancos no meio das cordas.

Minha vontade agora é de dar socos na cara do “normal”.

Preciso desenvolver novas habilidades, criar novos comportamentos e forjar hábitos que me tornem essencial nas próximas horas (futuro próximo).

Commodity. Muitos profissionais serão identificados como commodities (pesquise o termo da palavra se preferir).

Eu? Você? A Odontologia?

Talvez.

Eu vou morrer tentando ser um pino redondo em um encaixe quadrado até os meus últimos dias.

“Quando você é honesto sobre o que lhe falta de conhecimento, você sabe onde é vulnerável e onde pode melhorar.”

 

 

Imagem Unsplash – Alec Favale

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